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Escritório Online :: Artigos » Direito Constitucional


A denúncia anônima e o dever do Estado de investigar ilícitos

29/03/2003
 
Jonas Lima



Muito se discute quando um procedimento investigatório é iniciado com suporte, ainda que indireto, em denúncia anônima enviada a um Tribunal de Contas, Corregedoria, Ministério Público ou qualquer outro órgão que detenha atribuições para agir na esfera judicial ou na esfera administrativa.

Em decorrência da vedação constitucional ao anonimato, garantida no artigo 5º, inciso IV, da Constituição Federal, diversos órgãos deixam expressas as exigências a serem observadas pelo "denunciante". Cite-se, por exemplo, a Corregedoria Geral da União, que, não obstante possa até mesmo receber denúncias via formulário de Internet (http://www.cgu.gov.br), requer o nome e o documento de identificação do denunciante, ainda que o processo a ser desenvolvido tenha caráter sigiloso, nos termos da Portaria nº 5, da própria CGU, datada de 26.06.01 (DO 28.06.2001 - http://www.presidencia.gov.br/cgu/legislacao/Portaria_5.htm).

Também o Tribunal de Contas da União, no artigo 235 do seu Regimento Interno (http://www.tcu.gov.br/Download/Institucional/TCU%20-%20Regimento%20Interno.pdf), exige que a denúncia contenha o nome legível do denunciante, sua qualificação e endereço. Caso não estejam preenchidos, além desses, todos os outros requisitos impostos, o Ministro Relator não conhecerá da denúncia (Parágrafo único do mesmo artigo).

A razão de ser dessas normas de cautela, aqui apenas exemplificadas em relação a dois órgãos públicos de grande relevância nacional, além da dificuldade no exercício da ampla defesa, é a eventual impossibilidade para o acusado de agir pela via inversa e processar também o seu "acusador" por crimes contra a honra, denunciação caluniosa, e ainda cobrar indenizações cíveis, por eventuais danos materiais e morais, que venha a sofrer diante de uma denúncia infundada.

A vedação do anonimato ainda desperta discussões polêmicas, mas muitos operadores do direito alertam para o fato de que tal vedação não pode ser vista isoladamente, mas sim em conjunto, e de forma ponderada, com a obrigação estatal de investigar ilícitos de que tenha conhecimento e em relação aos quais possa agir até mesmo de ofício, sem qualquer provocação de cidadãos ou agentes públicos.

O presente artigo tem um caráter mais introdutório sobre o tema e constitui uma verdadeira homenagem ao Excelentíssimo Senhor Ministro Celso de Mello, do Supremo Tribunal Federal, que, de forma espetacular, tratou tão bem do assunto, com uma visão bastante abrangente e, ao mesmo tempo, muito objetiva e clara, no despacho proferido nos autos do Mandado de Segurança nº 24369/DF.

Segue, portanto, a íntegra dessa contribuição aos estudiosos e militantes do direito:

---------------------------------------------
Supremo Tribunal Federal - Decisão monocrática
MS 24369 / DF - Relator: Ministro Celso de Mello
Data: 10.10.2002 - DJ: 16/10/2002 - P 00024

EMENTA: DELAÇÃO ANÔNIMA. COMUNICAÇÃO DE FATOS GRAVES QUE TERIAM SIDO PRATICADOS NO ÂMBITO DA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA. SITUAÇÕES QUE SE REVESTEM, EM TESE, DE ILICITUDE (PROCEDIMENTOS LICITATÓRIOS SUPOSTAMENTE DIRECIONADOS E ALEGADO PAGAMENTO DE DIÁRIAS EXORBITANTES). A QUESTÃO DA VEDAÇÃO CONSTITUCIONAL DO ANONIMATO (CF, ART. 5º, IV, "IN FINE"), EM FACE DA NECESSIDADE ÉTICO--JURÍDICA DE INVESTIGAÇÃO DE CONDUTAS FUNCIONAIS DESVIANTES. OBRIGAÇÃO ESTATAL, QUE, IMPOSTA PELO DEVER DE OBSERVÂNCIA DOS POSTULADOS DA LEGALIDADE, DA IMPESSOALIDADE E DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA (CF, ART. 37, "CAPUT"), TORNA INDERROGÁVEL O ENCARGO DE APURAR COMPORTAMENTOS EVENTUALMENTE LESIVOS AO INTERESSE PÚBLICO. RAZÕES DE INTERESSE SOCIAL EM POSSÍVEL CONFLITO COM A EXIGÊNCIA DE PROTEÇÃO À INCOLUMIDADE MORAL DAS PESSOAS (CF, ART. 5º, X). O DIREITO PÚBLICO SUBJETIVO DO CIDADÃO AO FIEL DESEMPENHO, PELOS AGENTES ESTATAIS, DO DEVER DE PROBIDADE CONSTITUIRIA UMA LIMITAÇÃO EXTERNA AOS DIREITOS DA PERSONALIDADE? LIBERDADES EM ANTAGONISMO. SITUAÇÃO DE TENSÃO DIALÉTICA ENTRE PRINCÍPIOS ESTRUTURANTES DA ORDEM CONSTITUCIONAL. COLISÃO DE DIREITOS QUE SE RESOLVE, EM CADA CASO OCORRENTE, MEDIANTE PONDERAÇÃO DOS VALORES E INTERESSES EM CONFLITO. CONSIDERAÇÕES DOUTRINÁRIAS. LIMINAR INDEFERIDA.

DECISÃO: O fundamento básico em que se apóia a presente impetração mandamental reside na alegação, deduzida pelo Conselho Federal de Farmácia, de que o princípio constitucional que veda o anonimato, consagrado no art. 5º, IV, da Carta Política, impede que o E. Tribunal de Contas da União conheça e faça processar denúncia anônima.

A parte ora impetrante sustenta que o próprio Regimento Interno do Tribunal de Contas da União, aprovado pela Resolução Administrativa TCU n. 15/93, dando execução à norma constitucional mencionada, exige que a denúncia, dentre outros requisitos, contenha "o nome legível do denunciante, sua qualificação e endereço (...)" (art. 213, caput), de tal modo que, não observados os requisitos e formalidades a que alude a norma em questão, impor-se-á, ao Relator ou ao Tribunal, o não-conhecimento da denúncia, com o conseqüente arquivamento do processo (art. 213, parágrafo único).

Cabe referir, não obstante tais razões, que o eminente Ministro MARCOS VINICIOS VILAÇA, tendo em consideração que a denúncia anônima ora questionada revelava fatos graves (licitações supostamente direcionadas e alegado pagamento de diárias exorbitantes), aptos a justificar a adoção das providências legais pertinentes, determinou fosse instaurado procedimento com o objetivo de apurar tais "indícios de irregularidades graves" (fls. 27), realizando-se, em conseqüência, "uma inspeção junto ao Conselho Federal de Farmácia (CFF), para averiguação dos fatos citados" (fls. 28).

O presente mandado de segurança foi impetrado contra essa deliberação, postulando, a entidade autárquica ora impetrante, seja determinado, aos órgãos ora apontados como coatores, "que se abstenham de processar denúncias ou representações anônimas, tendo em vista a falta de amparo legal para tal mister" (fls. 15).

Formulou-se, no caso, pedido de medida liminar, objetivando a suspensão cautelar "da tramitação dos autos de processo da representação n.º 014.784/2002-7, no qual se utiliza, indevidamente, (...) missiva apócrifa, recebida como representação, originando, assim, ilegalmente, a inspeção dessa Corte, nos quadros da Autarquia (...)" (fls. 15 - grifei).

Passo a apreciar o pedido em questão.

O veto constitucional ao anonimato, como se sabe, busca impedir a consumação de abusos no exercício da liberdade de manifestação do pensamento, pois, ao exigir-se a identificação de quem se vale dessa extraordinária prerrogativa político-jurídica, essencial à própria configuração do Estado democrático de direito, visa-se, em última análise, a possibilitar que eventuais excessos, derivados da prática do direito à livre expressão, sejam tornados passíveis de responsabilização, "a posteriori", tanto na esfera civil, quanto no âmbito penal.

Essa cláusula de vedação - que jamais deverá ser interpretada como forma de nulificação das liberdades do pensamento - surgiu, no sistema de direito constitucional positivo brasileiro, com a primeira Constituição republicana, promulgada em 1891 (art. 72, § 12), que objetivava, ao não permitir o anonimato, inibir os abusos cometidos no exercício concreto da liberdade de manifestação do pensamento, viabilizando, desse modo, a adoção de medidas de responsabilização daqueles que, no contexto da publicação de livros, jornais ou panfletos, viessem a ofender o patrimônio moral das pessoas agravadas pelos excessos praticados, consoante assinalado por eminentes intérpretes daquele Estatuto Fundamental (JOÃO BARBALHO, "Constituição Federal Brasileira - Comentários", p. 423, 2ª ed., 1924, F. Briguiet; CARLOS MAXIMILIANO, "Comentários à Constituição Brasileira", p. 713, item n. 440, 1918, Jacinto Ribeiro dos Santos Editor).

Vê-se, portanto, tal como observa DARCY ARRUDA MIRANDA ("Comentários à Lei de Imprensa", p. 128, item n. 79, 3ª ed., 1995, RT), que a proibição do anonimato tem um só propósito, qual seja, o de permitir que o autor do escrito ou da publicação possa expor-se às conseqüências jurídicas derivadas de seu comportamento abusivo: "Quem manifesta o seu pensamento através da imprensa escrita ou falada, deve começar pela sua identificação. Se não o faz, a responsável por ele é a direção da empresa que o publicou ou transmitiu."

Nisso consiste a ratio subjacente à norma, que, inscrita no inciso IV do art. 5º, da Constituição da República, proclama ser "livre a manifestação do pensamento, sendo vedado o anonimato" (grifei).

Torna-se evidente, pois, que a cláusula que proíbe o anonimato - ao viabilizar, "a posteriori", a responsabilização penal e/ou civil do ofensor - traduz medida constitucional destinada a desestimular manifestações abusivas do pensamento, de que possa decorrer gravame ao patrimônio moral das pessoas injustamente desrespeitadas em sua esfera de dignidade, qualquer que seja o meio utilizado na veiculação das imputações contumeliosas.

Esse entendimento é perfilhado por ALEXANDRE DE MORAES ("Constituição do Brasil Interpretada", p. 207, item n. 5.17, 2002, Atlas), UADI LAMMÊGO BULOS ("Constituição Federal Anotada", p. 91, 4ª ed., 2002, Saraiva) e CELSO RIBEIRO BASTOS/IVES GANDRA MARTINS ("Comentários à Constituição do Brasil", vol. 2/43-44, 1989, Saraiva), dentre outros eminentes autores, cujas lições enfatizam que a proibição do anonimato - por tornar necessário o conhecimento da autoria do pensamento exteriorizado ou da comunicação feita - visa a fazer efetiva, "a posteriori", a responsabilidade penal e/ou civil daquele que abusivamente exerceu a liberdade de expressão.
Lapidar, sob tal perspectiva, o magistério de JOSÉ AFONSO DA SILVA ("Curso de Direito Constitucional Positivo", p. 244, item n. 15.2, 20ª ed., 2002, Malheiros), que, ao interpretar a razão de ser da cláusula constitucional consubstanciada no art. 5º, IV, in fine, da Lei Fundamental, assim se manifesta:

"A liberdade de manifestação do pensamento tem seu ônus, tal como o de o manifestante identificar-se, assumir claramente a autoria do produto do pensamento manifestado, para, em sendo o caso, responder por eventuais danos a terceiros. Daí porque a Constituição veda o anonimato. A manifestação do pensamento não raro atinge situações jurídicas de outras pessoas a que corre o direito, também fundamental individual, de resposta. O art. 5º, V, o consigna nos termos seguintes: é assegurado o direito de resposta, proporcional ao agravo, além da indenização por dano material, moral ou à imagem. Esse direito de resposta, como visto antes, é também uma garantia de eficácia do direito à privacidade. Esse é um tipo de conflito que se verifica com bastante freqüência no exercício da liberdade de informação e comunicação." (grifei)

A presente impetração mandamental, nos termos em que deduzida, sustenta, com apoio na cláusula que veda o anonimato, a existência, em nosso ordenamento positivo, de impedimento constitucional à formulação de delações anônimas.

É inquestionável que a delação anônima pode fazer instaurar situações de tensão dialética entre valores essenciais, igualmente protegidos pelo ordenamento constitucional, dando causa ao surgimento de verdadeiro estado de colisão de direitos, caracterizado pelo confronto de liberdades revestidas de idêntica estatura jurídica, a reclamar solução que, tal seja o contexto em que se delineie, torne possível conferir primazia a uma das prerrogativas básicas, em relação de antagonismo com determinado interesse fundado em cláusula inscrita na própria Constituição.

O caso ora exposto pela parte impetrante - que é entidade autárquica federal - pode traduzir, eventualmente, a ocorrência, na espécie, de situação de conflituosidade entre direitos básicos titularizados por sujeitos diversos.

Com efeito, há, de um lado, a norma constitucional, que, ao vedar o anonimato (CF, art. 5º, IV), objetiva fazer preservar, no processo de livre expressão do pensamento, a incolumidade dos direitos da personalidade (como a honra, a vida privada, a imagem e a intimidade), buscando inibir, desse modo, delações anônimas abusivas. E existem, de outro, certos postulados básicos, igualmente consagrados pelo texto da Constituição, vocacionados a conferir real efetividade à exigência de que os comportamentos funcionais dos agentes estatais se ajustem à lei (CF, art. 5º, II) e se mostrem compatíveis com os padrões ético-jurídicos que decorrem do princípio da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput).

Presente esse contexto, resta verificar se o direito público subjetivo do cidadão à rigorosa observância do postulado da legalidade e da moralidade administrativa, por parte do Estado e de suas instrumentalidades (como as autarquias), constitui, ou não, limitação externa aos direitos da personalidade (considerados, aqui, em uma de suas dimensões, precisamente aquela em que se projetam os direitos à integridade moral), em ordem a viabilizar o conhecimento, pelas instâncias governamentais, de delações anônimas, para, em função de seu conteúdo - e uma vez verificada a idoneidade e a realidade dos dados informativos delas constantes -, proceder-se, licitamente, à apuração da verdade, mediante regular procedimento investigatório.

Entendo que a superação dos antagonismos existentes entre princípios constitucionais há de resultar da utilização, pelo Supremo Tribunal Federal, de critérios que lhe permitam ponderar e avaliar, "hic et nunc", em função de determinado contexto e sob uma perspectiva axiológica concreta, qual deva ser o direito a preponderar no caso, considerada a situação de conflito ocorrente, desde que, no entanto, a utilização do método da ponderação de bens e interesses não importe em esvaziamento do conteúdo essencial dos direitos fundamentais, tal como adverte o magistério da doutrina (DANIEL SARMENTO, "A Ponderação de Interesses na Constituição Federal" p. 193/203, "Conclusão", itens ns. 1 e 2, 2000, Lumen Juris; LUÍS ROBERTO BARROSO, "Temas de Direito Constitucional", p. 363/366, 2001, Renovar; JOSÉ CARLOS VIEIRA DE ANDRADE, "Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976", p. 220/224, item n. 2, 1987, Almedina; FÁBIO HENRIQUE PODESTÁ, "Direito à Intimidade. Liberdade de Imprensa. Danos por Publicação de Notícias", in "Constituição Federal de 1988 - Dez Anos (1988-1998)", p. 230/231, item n. 5, 1999, Editora Juarez de Oliveira; J. J. GOMES CANOTILHO, "Direito Constitucional", p. 661, item n. 3, 5ª ed., 1991, Almedina; EDILSOM PEREIRA DE FARIAS, "Colisão de Direitos", p. 94/101, item n. 8.3, 1996, Fabris Editor; WILSON ANTÔNIO STEINMETZ, "Colisão de Direitos Fundamentais e Princípio da Proporcionalidade", p. 139/172, 2001, Livraria do Advogado Editora; SUZANA DE TOLEDO BARROS, "O Princípio da Proporcionalidade e o Controle de Constitucionalidade das Leis Restritivas de Direitos Fundamentais", p. 216, "Conclusão", 2ª ed., 2000, Brasília Jurídica).

Parece registrar-se, na espécie em exame, uma situação de colidência entre a pretensão mandamental de rejeição absoluta da delação anônima, ainda que esta possa veicular fatos alegadamente lesivos ao patrimônio estatal, e o interesse primário da coletividade em ver apuradas alegações de graves irregularidades que teriam sido cometidas na intimidade do aparelho administrativo do Estado.

Isso significa, em um contexto de liberdades em conflito, que a colisão dele resultante há de ser equacionada, utilizando-se, esta Corte, do método - que é apropriado e racional - da ponderação de bens e valores, de tal forma que a existência de interesse público na revelação e no esclarecimento da verdade, em torno de supostas ilicitudes penais e/ou administrativas que teriam sido praticadas por entidade autárquica federal, bastaria, por si só, para atribuir, à denúncia em causa (embora anônima), condição viabilizadora da ação administrativa adotada pelo E. Tribunal de Contas da União, na defesa do postulado ético-jurídico da moralidade administrativa, em tudo incompatível com qualquer conduta desviante do improbus administrator.

Na realidade, o tema pertinente à vedação constitucional do anonimato (CF, art. 5º, IV, in fine) posiciona-se, de modo bastante claro, em face da necessidade ético-jurídica de investigação de condutas funcionais desviantes, considerada a obrigação estatal, que, imposta pelo dever de observância dos postulados da legalidade, da impessoalidade e da moralidade administrativa (CF, art. 37, caput), torna imperioso apurar comportamentos eventualmente lesivos ao interesse público.

Não é por outra razão que o magistério da doutrina admite, não obstante a existência de delação anônima, que a Administração Pública possa, ao agir autonomamente, efetuar averiguações destinadas a apurar a real concreção de possíveis ilicitudes administrativas, consoante assinala JORGE ULISSES JACOBY FERNANDES, eminente Professor e Conselheiro do E. Tribunal de Contas do Distrito Federal ("Tomada de Contas Especial", p. 51, item n. 4.1.1.1.2, 2ª ed., 1998, Brasília Jurídica):

"Ocorrendo de a Administração vislumbrar razoável possibilidade da existência efetiva dos fatos denunciados anonimamente, deverá promover diligências e, a partir dos indícios coligidos nesse trabalho, instaurar a TCE, desvinculando-a totalmente da informação anônima." (grifei)

Essa orientação é também admitida, mesmo em sede de persecução penal, por FERNANDO CAPEZ ("Curso de Processo Penal", p. 77, item n. 10.13, 7ª ed., 2001, Saraiva):

"A delação anônima (notitia criminis inqualificada) não deve ser repelida de plano, sendo incorreto considerá-la sempre inválida; contudo, requer cautela redobrada, por parte da autoridade policial, a qual deverá, antes de tudo, investigar a verossimilhança das informações." (grifei)

Com idêntica percepção da matéria em exame, revela-se o magistério de JULIO FABBRINI MIRABETE ("Código de Processo Penal Interpretado", p. 95, item n. 5.4, 7ª ed., 2000, Atlas):

"(...) Não obstante o art. 5º, IV, da CF, que proíbe o anonimato na manifestação do pensamento, e de opiniões diversas, nada impede a notícia anônima do crime (notitia criminis inqualificada), mas, nessa hipótese, constitui dever funcional da autoridade pública destinatária, preliminarmente, proceder com a máxima cautela e discrição a investigações preliminares no sentido de apurar a verossimilhança das informações recebidas. Somente com a certeza da existência de indícios da ocorrência do ilícito é que deve instaurar o procedimento regular." (grifei)

Esse entendimento é também acolhido por NELSON HUNGRIA ("Comentários ao Código Penal", vol. IX/466, item n. 178, 1958, Forense), cuja análise do tema - realizada sob a égide da Constituição republicana de 1946, que expressamente não permitia o anonimato (art. 141, § 5º), à semelhança do que se registra, presentemente, com a vigente Lei Fundamental (art. 5º, IV, "in fine") - enfatiza a imprescindibilidade de investigação, ainda que motivada por delação anônima, desde que fundada em fatos verossímeis:

"Segundo o § 1.º do art. 339, 'A pena é aumentada de sexta parte, se o agente se serve de anonimato ou de nome suposto'. Explica-se: o indivíduo que se resguarda sob o anonimato ou nome suposto é mais perverso do que aquêle que age sem dissimulação. Êle sabe que a autoridade pública não pode deixar de investigar qualquer possível pista (salvo quando evidentemente inverossímil), ainda quando indicada por uma carta anônima ou assinada com pseudônimo; e, por isso mesmo, trata de esconder-se na sombra para dar o bote viperino. Assim, quando descoberto, deve estar sujeito a um plus de pena."(grifei)

Pronuncia-se em igual sentido JOSÉ FREDERICO MARQUES ("Elementos de Direito Processual Penal", vol. I/147, item n. 71, 2ª ed., atualizada por Eduardo Reale Ferrari, 2000, Millennium), cujo magistério - não obstante a vedação constitucional do anonimato, vigente quando da publicação de sua obra (CF/46, art. 141, § 5º) - coloca em relevo a impossibilidade de a autoridade pública ignorar a comunicação, ainda que de origem não identificada, contanto que essa notícia veicule, de modo idôneo, a suposta ocorrência de atos revestidos de ilicitude:

"No direito pátrio, a lei penal considera crime a denunciação caluniosa ou a comunicação falsa de crime (Código Penal, arts. 339 e 340), o que implica a exclusão do anonimato na notitia criminis, uma vez que é corolário dos preceitos legais citados a perfeita individualização de quem faz a comunicação de crime, a fim de que possa ser punido, no caso de atuar abusiva e ilicitamente.

Parece-nos, porém, que nada impede a prática de atos iniciais de investigação da autoridade policial, quando delação anônima lhe chega às mãos, uma vez que a comunicação apresente informes de certa gravidade e contenha dados capazes de possibilitar diligências específicas para a descoberta de alguma infração ou seu autor. Se, no dizer de G. Leone, não se deve incluir o escrito anônimo entre os atos processuais, não servindo ele de base à ação penal, e tampouco como fonte de conhecimento do juiz, nada impede que, em determinadas hipóteses, a autoridade policial, com prudência e discrição, dele se sirva para pesquisas prévias. Cumpre-lhe, porém, assumir a responsabilidade da abertura das investigações, como se o escrito anônimo não existisse, tudo se passando como se tivesse havido notitia criminis inqualificada." (grifei)

Essa mesma posição é igualmente perfilhada por GUILHERME DE SOUZA NUCCI ("Código de Processo Penal Comentado", p. 68, item n. 29, 2002, RT) e por DAMÁSIO E. DE JESUS ("Código de Processo Penal Anotado", p. 9, 18ª ed., 2002, Saraiva), cumprindo rememorar, ainda, por valiosa, a lição de ROGÉRIO LAURIA TUCCI ("Persecução Penal, Prisão e Liberdade", p. 34/35, item n. 6, 1980, Saraiva):

"Não deve haver qualquer dúvida, de resto, sobre que a notícia do crime possa ser transmitida anonimamente à autoridade pública (...).

(...) constitui dever funcional da autoridade pública destinatária da notícia do crime, especialmente a policial, proceder, com máxima cautela e discrição, a uma investigação preambular no sentido de apurar a verossimilhança da informação, instaurando o inquérito somente em caso de verificação positiva. E isto, como se a sua cognição fosse espontânea, ou seja, como quando se trate de notitia criminis direta ou inqualificada (...)." (grifei)

Cabe referir, finalmente, neste ponto, que o E. Superior Tribunal de Justiça, ao apreciar a questão da delação anônima, em face do art. 5º, IV, in fine, da Constituição da República, já se pronunciou no sentido de considerá-la juridicamente possível, desde que o Estado, ao agir em função dessa comunicação não identificada, atue com cautela, em ordem a evitar a consumação de situações que possam ferir, injustamente, direitos de terceiros:

"CRIMINAL. RHC. NOTITIA CRIMINIS ANÔNIMA. INQUÉRITO POLICIAL. VALIDADE.

1. A delatio criminis anônima não constitui causa da ação penal que surgirá, em sendo o caso, da investigação policial decorrente. Se colhidos elementos suficientes, haverá, então, ensejo para a denúncia. É bem verdade que a Constituição Federal (art. 5º, IV) veda o anonimato na manifestação do pensamento, nada impedindo, entretanto, mas, pelo contrário, sendo dever da autoridade policial proceder à investigação, cercando-se, naturalmente, de cautela.

2. Recurso ordinário improvido."

(RHC 7.329-GO, Rel. Min. FERNANDO GONÇALVES - grifei)

"CONSTITUCIONAL, PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. (...). PROCESSO ADMINISTRATIVO DESENCADEADO ATRAVÉS DE 'DENÚNCIA ANÔNIMA'. VALIDADE. INTELIGÊNCIA DA CLÁUSULA FINAL DO INCISO IV DO ART. 5º DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL (VEDAÇÃO DO ANONIMATO). (...). RECURSO CONHECIDO E IMPROVIDO."
(RMS 4.435-MT, Rel. Min. ADHEMAR MACIEL - grifei)

Vê-se, pois, não obstante o caráter apócrifo da denúncia, que, tratando-se de comunicação de fatos revestidos de aparente ilicitude, existiria possibilidade de o E. Tribunal de Contas da União adotar medidas destinadas a esclarecer a idoneidade das alegações de irregularidades que lhe foram transmitidas, em atendimento ao dever estatal de fazer prevalecer - consideradas razões de interesse público - a observância do postulado ético-jurídico da moralidade administrativa e da legalidade.

Note-se, por necessário, que o eminente Ministro MARCOS VINICIOS VILAÇA limitou-se, na espécie, como Relator, a agir com extrema cautela e louvável prudência, determinando fosse instaurado procedimento com o único objetivo de apurar os "indícios de irregularidades graves" (fls. 27) expostos na denúncia anônima, em ordem a promover a "averiguação dos fatos citados" (fls. 28), para, em função de tais esclarecimentos, adotar, então, as providências reclamadas pelo ordenamento jurídico.

De outro lado, e mesmo que se pudesse vislumbrar plausibilidade jurídica na pretensão mandamental deduzida pela parte impetrante, ainda assim não se revelaria presente, na espécie, o requisito pertinente ao periculum in mora, eis que a tramitação do procedimento ora questionado não basta, só por si, para tornar concreta qualquer situação de possível frustração da ordem mandamental, caso venha esta a ser deferida.

É que, eventualmente concedido, na espécie, o mandado de segurança impetrado, invalidar-se-á, desde o início, o referido procedimento administrativo, sem que resulte, daí, uma situação apta a afetar, de modo irreversível, o direito ora vindicado pela parte impetrante, que consistiria - segundo sustenta - no alegado direito de não sofrer fiscalização com base em denúncias anônimas.

Cabe assinalar, neste ponto, que o deferimento da medida liminar, em sede mandamental, somente se justifica, se, de sua eventual recusa, puder resultar, de modo irreversível, a frustração da própria sentença concessiva do mandado de segurança, comprometida, assim, sob tais circunstâncias, em sua precípua função de amparo à integridade do direito por ela assegurado (Lei nº 1.533/51, art. 7º, II, in fine).

Na realidade, dentre os requisitos legitimadores da outorga do provimento liminar, destaca-se, por seu relevo, a possibilidade de ocorrência de lesão irreparável ou de difícil reparação, de tal modo que, em não se registrando tal hipótese, revelar-se-á insuscetível de acolhimento a pretensão de ordem cautelar.

Isso significa, portanto, que, sem a cumulativa ocorrência dos pressupostos a que alude o art. 7º, II, da Lei nº 1.533/51, não se justificará a concessão da medida liminar, em sede de mandado de segurança.

Esse entendimento tem o beneplácito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal:

"Mandado de segurança. Liminar. Embora esta medida tenha caráter cautelar, os motivos para a sua concessão estão especificados no art. 7º, II da Lei nº 1.533/51, a saber: a) relevância do fundamento da impetração; b) que, do ato impugnado, possa resultar a ineficácia da medida, caso seja deferida a segurança.

Não concorrendo estes dois requisitos, deve ser denegada a liminar."(RTJ 112/140, Rel. Min. ALFREDO BUZAID - grifei)

Sendo assim, e tendo em consideração as razões expostas, indefiro, em sede de deliberação, o pedido de medida liminar, sem prejuízo de oportuno reexame da questão ora veiculada nesta sede mandamental. 2. Requisitem-se informações aos órgãos ora apontados como coatores, encaminhando-se-lhes cópia da presente decisão.

Publique-se.

Brasília, 10 de outubro de 2002.

Ministro CELSO DE MELLO

Relator

* decisão publicada no DJU de 16.10.2002

Fonte: Escritório Online


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